sexta-feira, novembro 23, 2012

Uma cena roubada do mundo entre o trem e o ponto v. 1

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Em um pequeno condomínio de prédios iguais, um menino de boné e mochila  e um senhor de camisa branca abotoada, balançando as chaves, saem pelo portão para a calçada mal cuidada:

“...mas já tô me fodendo lá das 10 às 6, o que ma...”

“olha a boca! depois não sabe porque o supervisor pega no teu pé!”

“tá, tá... mas olha: tô lá diretão, todo dia das 10 às 6, no sábado, das 10 às 4... sério, quem trabalha no sábado até às 4?”

“Você tá com 16 anos. já devia tá ganhando mais...”

“porra, dou o cu lá o dia inteiro e no sábado. não tenho jeito de fazer mais... que foi?”

“Que que eu acabei de te falar?”

“.?.”

“Sobre o supervisor? Cuida essa boca, filho...”

“tá, tá... porra, mas que que eu podia fazer de diferente? não tenho como pegar outro trampo!”

“Acontece que você vai ter de abrir mão de algumas ‘ideias’ que você colocou na cabeça...”

“Como assim? Que ideias?”

“Com 16 anos, você já devia tá pegando uns 2600/ 2800, não esses milão aí.”

“Tá, tá, mas que eu tenho que fazer diferente pra ganhar mais?”

“Então: tem que pegar um emprego das 8 às 6, usar outras roupas, botar sapato, cortar esse cabelo...”

“Ah, também não fode, né? Pra quê? Até parece que ser boy de escritório vai me ajudar a ganhar mais...”

“Mas é assim, Kauê. se começa de baixo e quando vê já é gerente.”

“Pai, de boa, as coisas não são assim...”

“E eu, Kauê? Cheguei onde estou como? Não foiu dando o cu, não... foi trabalhando, ficando direto no escritório, até o chefe reconhecer o teu empenho, o teu talento. é assim que as coisas funcionam.”

“Mas pai, tu tá nessa há anos e nunca chegou lá em cima. Além do mais, eu edito vídeo. Gosto disso. Não quero carimbar papel num escritório...”

“Pelo menos é um trabalho de verdade. que mal há em ‘outorgar veracidade’ a documentos?”

“Mas pai, não quero um trabalho de verdade. Só quero, sei lá, ter um dinheiro, que você e a mãe não me encham o saco e ficar com a Jaque.”

“Encher o saco? estamos é preocupados com seu futuro. é preciso um emprego estável.”

“Pai, tudo é impermanência. por isso quero pegar a Jaque agora, porque depois, sei lá, vai que ela muda demais, começa a curtir um outro som, ler umas coisas erradas...”

“Para tudo! Você quer ficar com uma garota pelo tipo de música que ela ouve?”

“Ué, óbvio. Não dá pra pegar alguém que curte bosta universitária.”

“Tua mãe não gosta do rei ou do tremendão.”

“Mas agora a merda tá feita, né? Tem trocentas prestações do apê pra pagar, tem que dar jeito na infiltração na parede, filho pra estudar, essas coisas tudo aí.”

“Filho, você tá se ouvindo?”

“Tô pai, tu precisa sacar essa impermanência melhor. Eu te explico outro dia.”

Os dois entraram num carro seminovo com 31 prestações a pagar. O pai de Kauê ficou balançado pela certeza do IPTU e pela tal impermanência. Kauê lembrou de Jaque cantarolando Winter Wooskie.

 

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quarta-feira, outubro 24, 2012

O mar parecia um sátiro contente após o coit*

Eu e Osvaldo

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[da exposição do Museu da Lingua Portuguesa, em SP: Oswald: culpado de tudo!]

eu sempre gostei de Oswald de Andrade e nunca tinha lido.

gostava sem saber que ele existia.

aí um dia eu li aqueles poemas pau(brasil) pra toda obra, aquela demolição da frase feita e do clichê, aquele humor meio sem graça, uma desseriedade muito da importante. parecia que eu abraçava uma dose concentrada de de açaí com macaunaíma.

daí eu li o Memórias sentimentais de João Miramar. Aì eu li o Serafim Ponte Grande. Aí eu entendi que sempre gostei do Oswald e da sua dança sem rebolado com as palavras.

(há de se confessar que lembro NESTE instante que tive um contato enganoso com o Oswald de Andrade pela citação em um CD da Legião Urbana - como é difícil confessar Legião hoje em dia - que era do Serafim: "O Brasil é uma república federativa cheia de árvores e gente dizendo adeus" - - descobri depois que a texto se completa com "depois todos morrem" e aquilo me pareceu aperta-coraçãosamente sério --. hoje eu penso que SP da época devia ser bem diferente da de hoje pro Oswald falar em árvore)

 

Ítaca com Serafim

com o aluno O. de Andrade eu soube qual o tipo de texto que eu gosto, que eu faço (cof!), que eu sou (cof, cof, cof!).

eu preciso ter muito cuidado pra não copiar o Oswald. a tentação é vergonhosa e poderosa.

e o lance com o Oswald é a sem-vergonhice.

mas e aí eu peguei pra reler o Serafim Ponte Grande (possivelmente alucinado pelo cinema de Sganzerla, que conversa tanto com a obra de Oswald, que é preciso mandar os dois embora de casa pra dormir) a diversão bate records a cada releitura, claro.

nessas, voltando de algum lugar, paro perto das máquinas pague quanto quiser de livros no metrô.

 

A história de como Lielson de Andrade encontra um livro e de que maneira isos o leva a postar em seu blog

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lá, estava ele ele: Pinto Calçudo ou Os últimos dias de Serafim Ponte Grande. eu descobri: José Ramos Góis Pinto Calçudo, expulso do romance por Serafim Ponte Grande, foi cumprir seu ostracismo numa máquina de livros. fez sentido demais!

convencido que se tratava de um ensaio sobre o Oswald, fiz o investimento em cash.

na leitura circular que sempre faço (orelhas, quarta capa, primeiro parágrafo, cinta/sobrecapa e índice - não nessa ordem) descobri que era uma obra de ficção de Sérgio Augusto Andrade.

que inveja, que desbunde, que delícia!

Sérgio faz um contralivro ao não-livro Serafim Ponte Grande, contando a história a partir da perspectiva do coadjuvante, Pinto Calçudo. as relações com a obra de Oswald estão muito além do óbvio, embora Augusto de Andrade (também queria ser de Andrade, parece que dá certo pra escritor) emule com maestria o humor oswaldiano.

o livro, como sua contraparte, é uma cesta de piquenique de gêneros literários, com alusões claras ao Ulysses de Joyce e a Mario de Andrade, por exemplo. e muita putaria, óbvio. pra tornar ainda mais agravante, essa pérola é o primeiro livro do Sérgio.

é um híbridão, que mistura ensaio, ficção, paródia, desrespeito e homenagem pra falar de Oswald. isso sim é entender do que se fala. se não sacanear, não tá certo. se for muito respeitoso, entendeu errado. se explicar demais, enche o saco.

 

Última frase em busca de um fecho imponente a um texto

não se digere antropofagicamente oswald, se rumina.

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segunda-feira, outubro 15, 2012

Simples consulta

Já conhece aquela do cara que foi no médico e daí tava lá na sala de espera e...

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- senhor [_}?

- sim?

- pode entrar, o doutor ^~^ vai atender o senhor agora.

- obrigado.

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- bem, [_}, o que posso fazer por você? 

- tá.. é o seguinte, ^~^: estou com um probleminha...

- Doutor...

- ahn?

- Doutor, pode me chamar de Doutor ^~^.

- mas aposto que você não fez doutorado, né?

- a lei permite que eu use esse nome e eu gosto. por favor, me chame de DOUTOR...

- certo, estou com um desconforto nas costas.

- tá, exatamente, onde é esse desconforto,  [_}?

- Mestre...

- oi?

- me chame de mestre.

- porque eu deveria...

- é que ainda não terminei o doutorado, na real, acabei de entrar.

- isso é um pouco infantil,  [_}...

- MESTRE  [_}. somos duas crianças em acordo, então, doutor ^~^: a lei me permite isso e eu gosto.

- você acha mesmo necessário...

- com certeza acho.

- bem, "mestre"  [_}, onde é sua dor?

- à esquerda, abaixo da omoplata, "doutor" ^~^.

- não gostei das aspas...

- sabe que doutor DE-VERDADE é um grau maior que mestre, né?

- eu sou de verdade! e posso exigir que me chame de doutor, que vai parecer sempre melhor que mestre. vire-se, por favor.

- pensei uma coisa: era mestre dos magos ou doutor dos magos.

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- sei que é Doutor Estranho, não mestre estranho.

- nunca quis ser mestre de RPG? porque doutor de RPG, só se for um clérigo apelão... e é webmaster, né? não webdoc. acho isso significtaivo. sem falar que um bom jogador pode ser um mestre da bola.

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- o sócrates era doutor...

- ele era. mas aposto que se pudesse escolher ia preferir ser mestre. no rap é MC, não DC. mais um ponto pra mim.

- ponto pra você,  [_}? O...

- MESTRE  [_}, por gentileza. Doutor Yoda ele não é...

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- olha, isso tá ficando ridículo...

- ridículo é alguém que não sabe reconhecer o valor do mestre. o desrespeito e dessignificação da autoridade do mestre é um retrocesso na educação!

- Do que você tá falando?

- não me olhe assim, não confunda autoridade com autoritarismo. me empresta teu bloco de anotações doutor ^~^.

- tó. mas pra quê você...

- tô te receitando uma Hannah Arendt pra essa situação. vou também colocar um Foucault em gotas, mas só em caso de não melhorar da sua doutorite. pelas suas pupilas posso perceber algum grau de bom senso ainda...

- mestre [_}, não tô entendendo..

- leu o médico rural do Kafka? bem, vamos fazer assim: tome essa Arendt que receitei, exercite ensaios 2 x por semana e artigos científicos outra 3. eu volto a te visitar em uns 20 dias. acha que consegue dar conta?

- sim, eu... acho que consigo...

- grande, nos vemos em 15 dias. pode me escrever um email caso as coisas fiquem difíceis. aí eu receito uns comentadores pra facilitar a entrada, tá?

 [_} levantou-se e saiu. ^~^ passou os próximos dias ansiosos pelo retorno do mestre. ocupava seu tempo com aulas de alemão e filosofia.

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sexta-feira, outubro 05, 2012

Histórias que imaginei enquanto usava o transporte público de São Paulo # 3

(primeira versão)

OU A volta para casa de Ulisses

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ela, vestida de blusa de onça e jeans, atravessou a plataforma de mãos dadas com ele, que estava de tênis, calça larga e camiseta estampada.

ela, com seu salto médio, pisa firme nos olhares que a acompanham até a ponta da plataforma, onde existirão as últimas portas do trem, daqui a poucos minutos. ele, mal olha para ela. segue firme, apressando seu passo curto para não atrasar o conjunto, com olhar firme, pra frente.

ela para ao lado da última coluna, onde o teto da estação deixa de ser e o coloca a frente dela. ela olha pra baixo, mas ele não olha pra cima. ele vê um rapaz bebendo água pra apagar com antecedência o calor da superlotação. e é a partir da água, que tanto já se falou em dicionários de símbolo, que lhe fluiu a palavra, pequena como ele, mas inteira: - água! tem? - quer água? acho que não t... ela interrompe o texto e o raciocínio. a busca por aquilo que ela sabe não ter ocupa toda sua vida dentro da bolsa: não, não está ali. - água? ele insiste, sem acusar, só pedindo mesmo. - não tem, filho. quer o mamá? - não... ela passa a mão no cabelo dele e ele se senta. - filho, não senta no chão que tá sujo, tá? ele apoia as costas na pilastra, se equilibra e mantém-se de cócoras. quase levanta o pescoço até ela, mas prefere olhar paras as pernas que vem-e-vão. - … isso, é, assim pode, filho... ela coloca os óculos escuros, confere o relógio da estação, olha pra o celular, o guarda na bolsa, mas não sabe que horas são. vê um espaço no banco a alguns metros. ele, já em pé, a ronda. - senta lá, filho. eu te espero aqui. puxado (ou empurrado), ele vai e trepa no banco. balança as pernas. e olha pra mãe pela primeira vez. fica pouco no banco, como se o impulso que o levou até lá fosse um empréstimo a ser devolvido. corre de volta e novamente ronda as pernas da mãe.

ela leva a mão nos cabelos deles, que não a impede, nem a incentiva. - como foi na casa de seu pai? - … - ele fez bolo pro você? - não... - mas era seu aniversário, ele não... não tinha bolo? - tinha bolo de chocolate. confusa pela ilógica, mas divertida pela mesma razão, a mãe continua: - bolo de chocolate é bom. - é... - tava gostoso? - me dá o carro? ela volta a cavocar a bolsa até tirar um pequeno brinquedo vermelho. em uma exploração cinematográfica, poderia se usar um ponto de câmera em contraplongée, valorizando a inundação solar, aproximando lentamente da mão da mãe, garantido o foco no objeto envelopado pela luz natural, faiscando de vermelho. mas não, isso não aconteceu.

ele pegou o brinquedo e fez os seus personagens (que ainda emprestarei um dia) dirigirem um veículo em alta velocidade nas paredes de um edifício gigantesco. tudo é possível aos heróis. - ó! e mostra pra sua mãe uma epifania em plástico: além do milagre de dar vida a quem não existe, ele também é capaz de tirar as rodas do carrinho. admirada como aqueles que veem sua fé confirmada, sua mãe diz: - puxa, mas ele não é feito pra isso. cuidado pra não quebrar, tá? - tá... as rodas voltam ao seu lugar e toda a magia se converte em um trem que chega.

ela passa a mão na cabeça dele de novo, ajeita sua bolsa e o pega no colo. - o bolo era pra festa, não era pra mim. ele diz perto das bochechas da mãe. - ai, Ulisses... e ela ri como fazia tempo que não conseguia. Mãe e filho entram no trem e se sentam. o trem parte e eles navegam, juntos. marinheiros. Ulisses errará por 14 anos até encontrar sua esposa e livrar sua casa dos pretendentes.

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quarta-feira, setembro 26, 2012

Mais uma vez, na sala de cinema

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enquanto eu subia a escada rolante da estação consolação, eu praguejei contra a senhora, toda passeante, que não deixou a esquerda livre para os apressadinhos e atrasados. que não deixou a esquerda livre pra mim.

corri pelas calçadas augusta abaixo até chegar ao cinema, interrompi uma moça confusa, que queria comprar uns ingressos pra teatro e não sabia o que fazer, e peguei meu bilhete gratuito praquela sessão da mostra.

me apressei pela porta sem funcionário pra rasgar o ingresso, achei o meio da cortina preta, entrei, localizei a Van e me sentei.

entre dois ufas e goles d'água, desliguei o celular, e fui sugado imediatamente.

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eu saí daquela sala de cinema na rua Augusta, eu estava em um mundo de granulados, luzes e cores envelhecidas.

por 45 minutos, eu vivi dentro de Vestígio.

a singela e delicada história sobre os últimos fios de vida de Uno Kawase, avó que criou Naomi, a diretora do filme.

não há muito o que falar que não pareça piegas, por isso a Naomi fez um filme – que é emocional no melhor sentido da palavra. as imagens e a construção do filme é tão certeira que a avó/mãe de da Naomi se transforma.

Uno Kawase se torna a mãe de todos nós, que todos sabemos (sem querer pensar muito nisso) que enterraremos um dia. eu nunca estarei preparado pra isso que sei que vai acontecer. pra ver que saber e entender nem sempre se entendem.

é o caminho da vida que nos tornemos órfãos.

a beleza e a sutiliza dessa ameaça tão forte, cria uma rede frágil, que enrola todo o expectador. e o expectador se vê em Uno. é certeza da vida que assim que nossos pais morrem, que sejamos os próximos.

a dicotomia dessa vidinha curta e sempre mal-aproveitada com o final certo assustam, apavoram e comovem.

se há filmes que fazem a experiência de cinema valer a pena, esse é um deles.

quando Naomi encerra o filme ("muito obrigada"), sou arremessado de volta na cadeira no meio de uma sala escura. Vanessa e eu nos pegamos pela mão e saímos dali.

eu sei que algo intenso aconteceu em mim, mas não sei se um dia serei capaz de entender.

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quarta-feira, setembro 12, 2012

Gibiteria e Quinto Mercado de Pulgas

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sexta-feira conversarei com Diego Gerlach, DW e Pedro Franz na Gibiteria, na praça Benedito Calixto. vai ter lançamento de Alvoroço, do Gerlach e do terceiro volume de Promessas de amor a desconhecidos enquanto espero o fim do mundo, do Pedro. o DW e eu vamos lá pra avacalhar, embora ele possa pelo menos falar sobre a HQ que está terminando.

sábado, às 11h30, estarei em uma mesa sobre quadrinhos infantis, no Mercado de Pulgas, com Cassius Medauar (JBC) e Paulo Maffia (Abril/Disney). o evento vai ser bem pertinho do metrô Vila Mariana.

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quinta-feira, setembro 06, 2012

Encrenca, de Manoel Carlos Karam

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a literatura é notória em lembrar, é um exercício de memória e lembrança (tem diferença?).

talvez, por exigir tanto da memória, que o entorno literário seja tão bom em esquecer. ou talvez seja por isso que ele é bom em solapar, pra daí esquecer.

tive a sorte de ser um "vidaloka de estante de biblioteca" (como soa ridículo isso) e emprestar livros completamente na lôca - nessas li Jean Genet, Osman Lins, Campos de Carvalho e muito mais gente que esqueci.

fui numa dessas que eu li Pescoço ladeado de parafuso, de Manoel Carlos Karam. e como aquilo era insano, doentio, lindo e sei lá mais o quê.

lembra que falei de memória coisa e tal ali no começo? pois bem, esse é o momento de justapor as informações e gerar uma ideia, que é óbvia, não?

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[Manoel Carlos Karam, por Pedro Franz]

pra mim, Karam é um autor mal-tratado pela memória literária. ele não é negado, pois para ser negado é preciso ser visto, coisa que acontece pouco com ele.

Karam morreu em Curitiba em 2007. de lá pra cá, pouco se falou de sua obra.

(meu sonho é que uma editroa bem hype lançasse a obra do cara, pros putinhas de editora comprarem e descobrirem esse material - enfim, sonhos sem creme são de graça)

pois bem, sendo eu essa criatura karamzeada ia ver Fausto e por um "erro de agenda" precisei esperar 4 horas até o filme começar. fui e comprei um livro transportável o bastante pra atravessar esse tempo.

entrei na Martins fontes da Paulista e quase levei o Tu não te moves de ti, da Hilda Hilst, mas peguei pelo rabo d'olho o Encrenca do Karam. 

o livro, em primeira pessoa, é sobre um cara que anda por uma cidade imaginária de carro, imaginando-se perseguido por uma ambulância cheia de enfermeiras sinuosas, indo e voltando de um bar chamado About, onde bebe drinks que se chamam Bambu e Gerard. esse narrador, especialista em achar coisas, vive se perdendo em pensamentos.

mas o que acontece no livro?

quase nada. mas é um dos nadas mais divertidos e habilidosos que eu li. a manipulação de tempo e espaço que Karam lança nas páginas do livro é fantástica. só lendo pra entender (Aqui tem trecho do livro.)

uma prosa vergonhosamente original salpicada de muito humor e de muitas ideias. o texto do Karam não se parece com o grande romance (sul)americano da vez, nem com "a voz" de sua geração. as pretensões são outras, de outros formatos e tamanhos.

faz falta mais escritores desse tipo, de prosa alucinada, que alucinam seus leitores.

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segunda-feira, agosto 27, 2012

Leiturosseia do Ulysses - desembarque

tem dia que a gente é Ulisses. sai pruma guerra sem sangue e sem troianos e só quer chegar logo em casa casa antes mesmo de terminar de trancar a porta.

aí você se perde aqui ou ali e não volta.

tenta voltar, navega, quase se afoga, naufraga, fracassa, fracasa, fracassa.

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todo mundo é meio Leopold Bloom, Molly Bloom, Stephen Dedalus.

todo mundo tá lá naquele livro, nadando, perdendo e perdendo.

até que um dia você chega em casa e desaperta os sapatos.

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o Ulysses de James Joyce é sobre isso. sobre sair e voltar, sobre perder.

feche os olhos e veja: você está em casa.

Sim.

 

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segunda-feira, agosto 20, 2012

Leiturosseia do Ulysses - Capítulo Dezessete - Ítaca

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[Imagem de David Byers Brown para o Canto XXIII da Odisseia, com o o reencontrod e Ulisses e Penélope]

finalmente Leopold Bloom volta a sua casa depois de diversos capítulos longe. o paralelo de suas peregrinações é com os 20 anos de aventura de Ulisses longe de Ítaca. uma última aventura o afasta de chegar: ter esquecido a chave. para entrar ele pula o portão e entra pela porta dos fundos, só então abrindo a porta para Stephen Dedalus com uma lamparina na mão.

eles se sentam, bebem um chocolate quente, conversam sobre aulas de italiano que Dedalus poderia dar a Molly. Stephen também recebe a proposta de pernoitar na casa da rua Eccles, 7, mas recusa a oferta. antes de ir, Stephen e Bloom mijam lado a lado, numa espécie de reconhecimento pelo baixio corporal (grotesco bakhtiniano?) um do outro. também comentam o céu estrelado.

Bloom volta para casa e bate com a cabeça na mobília (referência ao banquinho atirado contra Ulisses disfarçado em seu palácio na Odisseia), que foi mudada de lugar. também há evidências de Rojão Boyland pela casa toda e Leopold está convicto que ele e Molly treparam.

diferente da Penélope que se resguarda dos pretendentes, a fogosa Molly não se mantém casta esperando o retorno do maridão aventureiro. um detalhe é revelado: Blomm e Molly não trepam desde a morte de Rudy, o filho do casal, alguns anos atrás.

isso de certa maneira explica a compreensão Bloom da infedelidade conjugal de sua esposa. interessante a inversão do estreótipo masculino-feminino nesse caso. e em vez d eum Ulisses amtando a lançadas e flechadas nobres de Ítaca, Bloom pensa se se divorcia ou não e assume claramente sua impossibilidade coma ideia de matar qualquer homem.

Leopold sobe as escadas e encontra sua mulher deitada dormindo. ele se deita com a cabeça nos pés da cama e beija a bunda da Molly, que desperta e eprgunta coisas do dia. ele conta algumas e oculta outras. e o livro vai para seu próximo capítulo com o famoso monólogo de Molly Bloom.

vale destacar também as lembranças do pai suicida de Bloom,  deprimido como Laertes, pai de Ulisses. diferentemente do épico homérico, aqui a tristeza levou o velho à morte.

a linguagem é das mais divertidas. é um jogo de perguntas e respostas que se propóem objetivas, mas dado o adiantado da noite, os narradores estão sonolentos e enrolados. uma simples pergunta se parece com um tratado, fora a embromação para responder - parecendo piada com o Homero, cujas perguntas mais simples tem respostas muito longas.

lembre-se sempre: para Joyce todo o mundo ficcional é linguagem. portanto os eventos da trama interferem diretamente no modo narrativo.

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quarta-feira, agosto 15, 2012

Leiturosseia do Ulysses - Capítulo Dezesseis - Eumeu

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[Imagem de David Byers Brown para o Canto XVI da Odisseia, com o Ulisses, telêmaco e Atena na cabana do Eumeu, o porqueiro]

Leopold Bloom leva Stephen dedalus para tomar um café, comer alguma coisa e curar o porre numa espelunquinha. Dedalus é o mala que espera-se dele, enquanto Bloom o tenta imrpessionar, pois gostaria de afinar sua amizade com ele.

no mesmo lugar, um marinheiro chamado W.B. Murphy conta histórias absurdas do que viu ao redor do mundo e que agora volta para ver sua mulher após muitos anos no mar.

(quem aí não se lembrou do Ulisses do Homero, por favor, estapeia a própria testa)

no fim, Bloom paga a conta e conduz Stephen para sua casa, que será o próximo capítulo.

o episódio homérico trata do encontro de Ulisses com Eumeu, seu fiel servo e porqueiro, disfarçado de um pedinte. Isso começa no canto XIII e se alonga por muitos outros, inclusive com chegada de Telêmaco. as relações mais visíveis estão nas conversas sobre política, amor e fidleidade em um lugar precário.

a técnica é a narrativa velha. vale lembrar que aqui começa o terceiro capítulo e os outros dois capítulos abriram com a narrativa jovem e com a narrativa madura. esse narrador aqui se perde, deixa frases pela metade, como se estivesse meio esclerosado, ou até mesmo com sono depois de tantas páginas. em vez de contar de forma simples, tudo é alongado e cheio de volteios.

aqui fica claro a força intelectual de Stephen e as limitações de Bloom, porém, sobra a boa vontade e o grande coração de Leopld em oposição ao blasé maleta do Stephen. resumindo, mesmo comendo com voracidade rins na manteirga eu beberia uma cerveja com o Bloom e não com o Stephen.

Se a primeira parte abriu com Stephen e a segunda com Bloom, a terceira parte começa com os dois.

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sexta-feira, agosto 10, 2012

Leiturosseia do Ulysses - Capítulo Quinze - Circe

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[página da adaptação para os quadrinhos de A odisseia, de George Pichard]

esse capítulo é uma verdadeira zona.

http://gifsoup.com/view/1411769/monty-python-disapproving-loo.html

ele se passa no bordel. Stephen, Mulligan, alguns outros estudantes de medicina e Leopold Bloom são convidados pelas profissionais do sexo a dispender seu rico dinheirinho com uma noite de exultância carnal.

o grupo todo, menos Bloom, faz a festa com o bolso do Stephen, que toca piano e canta, muito louco de bebida.

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no final, o sensato Leopold, convence Stephen a ir embora. mas antes de sair, o jovem Dedalus quebra uma lâmpada sem querer e as cortesãs exigem o pagmento do reparo em um esquema superfaturado digno de uma CPI ou da

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Bloom argue que não e paga só o devido, sendo que ele já havia se autointitulado guardião do dinheiro de Stephen. isso não acaba bem e após um linda discussão com um militar britânico Dedalus toma-lhe uma porrada na cara e desmaia.

os guardas chegam para ver qualé e são convencidos, de boa, a vazar. Mulligan ajuda Stephen e o conduz direto para a terceira parte do livro, o capítulo 16.

esse capítulo é totalmente alucinado na parte da linguagem e escrito como uma peça teatral com rubricas e entrada dos nomes dos personagens antes de suas falas. Bloom é transformado em mulher e em porco num momento hilário (e também coroado governador), Stephen encontra o fantasma de sua mãe em um momento apavorante e o livro gera um momento incrível para o leitor. sem dúvida o capítulo que mais me emocionou e me deixou doido foi este.

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(sem falar no final tocante em que Bloom revê o filho morto)

essa alucinação toda tem a ver com a base homérica do capítulo, que é Circe, uma senhora mágica que exala sexo, no Canto X da Odisseia. Circe transforma os companheiros de Ulisses em porcos depois de chapa-los com o velho truque do boa noite, cinderela (que devia se chamar boa noite cronos) e o próprio saqueador de cidades só se salva porque Hermes deu a dica: come essa flor aqui que tu fica imune - detalhe importante: a flor se chama móli -- molly, móli, ahn-ahn?

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aí o Ulisses, coitado, é obrigado a trepar com a Circe pra livrar seus homens da maldição. ele faz o esforço e eles navegam para casa ou quase isso. tá aqui um resumo mais completo do episódio.

o capítulo mais longo do livro provavelmente deve sua imensa paginação à formatação de texto teatral - que palpito eu, seria escrito em formato de roteiro audiovisual se Joyce conhece o formato que se usa hoje em dia.

pois bem, atravessamos 15 capítulos e duas partes, no capítulo seguinte já estaremos em Ítaca e muito perto do fim já saudoso dessa odisseia.

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segunda-feira, agosto 06, 2012

Leiturosseia do Ulysses - Capítulo Quatorze - Gado do Sol

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[o pôster bacanudo é do Nicholas Girling e pode ser comprado no site dele]

apesar do Paulo Coelho dizer que não gosta e que o Ulysses é um livro vazio, continuo com a minha leitura por pura teimosia, pois, afinal, o que mais pode ser dito depois de dom Paulete? 

ao livro que fez mal à literatura: este é um dos capítulos mais audaciososo do Ulysses - também chamado de difícil e de ilegível. veja só: a cena se passa na maternidade, onde a Sra. Purefoy está há dias em um parto complicadíssimo e Leopold Bloom resolve visitá-la. lá no hospital encontra Stephen e uma galera aprontando todas e bebendo mais ainda.

por alguma razão, Bloom fica com pena de Stephen e resolve cuidar do moleque pra ele não fazer merda. então a criança Purefoy nasce bem e todos resolvem cair na gandaia e Bloom vai junto. daí, o próximo capítulo que se passa num bordel.

o episódio homérico é aquele que os marinheiros do Ulisses desobedecem o aviso e carneiam os bois de Hélio, o Sol, para comer, invocando contra eles, óbvio, the furious anger do deus.

é mais um dos quiprocós da Odisseia: quando tudo parecia que se arranjaria, alguén faz uma cagada e eles não conseguem voltar pra casa. e você achava que a Uni era um problema.

agora, precisamos pensar com a cabeça do Joyce: ora, se a história se passa numa maternidade, com alguém nascendo, é óbvio que a linguagem tem de acompanhar. se algo nasce, a língua nasce também diante do leitor, mostrarei as raízes da lingua inglesa e parodiarei escritores importantes para o estabelecimento do idioma. é óbvio.

para os interessados em conhecer cada um dos textos parodiados, recomendo esse link aqui. e este ótimo resumo aqui também, ó.

nesse capítulo, o tradutor tem de sapatear. o Caetano Galindo optou por procurar correspondências de textos formadores do português para parodiá-los, o que me parece uma solução mui sensata. esse, sme dúvida, é o capítulo mais pra nerd de literatura do livro.

porém, marca outro fator importante pra prosa de ficção do século XX e XXI: a paródia e o pastiche.

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segunda-feira, julho 30, 2012

Leiturosseia do Ulysses - Capítulo Doze - Ciclope

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[Imagem de David Byers Brown para o Canto IX da Odisseia, com o ciclope enchendo o caverão de vinho]

a história se passa num boteco, onde o Bloom vai para esperar a chegada de Cunningham. enquanto espera, é maltratado por algumas outras pessoas e principalmente por um personagem chamado Cidadão. e seu cão babento, claro.

gosto muitíssimo deste capítulo. o narrador é um personagem não identificado, que também está nessa mesa com o cidadão. aflora o preconceito contra estrangeiros e judeus conforme as bebidas são entornadas.

o Cidadão representa o ser preconceituoso, reacionário, militarista e nacionalista. ele mantém a postura de que está sempre certo, e tem uma visão limitada, que não admite questionamento. ele é o ciclope do episódio homérico.

como os ciclopes tinham um olho só, não tinham perspectiva. assim como o Cidadão que não enxerga nada em perspectiva.

na Odisseia, Ulisses e sua tripulação são aprisionados por um ciclope, Polifemo, que pretende os devorar um a um. o monstro sai durante o dia para pastorear suas ovelhas e coloca uma enorme pedra na entrada da caverna que impede a saída dos marinheiros.

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[adaptação xuxu em HQ da Odisseia, por George Pichard]

Ulisses, matreiro que só, arma um jeito de escaparem: embebeda o ciclope e afia um tronco de árvore que ele usa para furar o olho do monstrengo. depois, amarram-se junto às ovelhas para poderem fugir da caverna, já que Polifemo sentia pelo tato o que estava passando e permitia a saída das ovelhas.

no final ainda, Ulisses diz que o nome dele é Ninguém e dá uma trollada de linguagem no ciclope, que pede ajuda aos outros ciclopes, e explica que ninguém o deixou cego. no final, todo mundo foge e Polifemo atira pedras contra os barcos.

no Ulysses do Joyce, o combate acontece ideologicamente (embora o Cidadão atire uma lata em que o cachorro nojetão dele come contra o Bloom no final do capítulo). eles sentam lá, discutem, Cunningham chega, Leopold vai embora, e mói o Cidadão com respostas inteligentes sobre o sionismo.

quando ao modelo da narrativa, me dá até comichão na barriga de comentar: chamado de gigantismo pelo Joyce, ele usa de paródia de diversos estilos e de vários formatos, tipo cartas e atas, sempre com um discurso que busca engrandecer o ato mais banal, como o Bloom subindo as escadas que tem uma descrição de tom bíblico, lembrando a ascenção de Elias aos céus. aqui tem uma bela anotação sobre esse capítulo.

além disso, quem narra a história, mormente, é aquele personagem desconhecido que não gosta do Bloom, o que gera um ponto de vista muito batuta pra história.

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sexta-feira, julho 13, 2012

Leiturosseia do Ulysses - Capítulo Dez - Rochedos Errantes

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[Mapa de Dublin]

a partir desse capítulo o grau de diversão lielsônica extrapola as escalas. a vontade que tenho é de continuar relendo os mesmos capítulos, mas sempre que me encorajo de seguir adiante, encontro outro capítulo tão divertido quanto o anterior.

temos 19 pequenos trechos da história de cidadãos de Dublin. entre eles os nossos caros Stephen e Leopold, e também Simon dedalus, as irmãs de Stephen, Rojão Boylan, e vários outros. todos eles andam pelas ruas de Dublin e a cada trecho nos oferece um ponto de vista sobre a urbanidade da capital irlandesa.

embora independentes, os trechos reaparecem encaixados nos outros como pequenas informações: descobrimos quem é o homem que perdeu o bonde no primeiro trecho e pra onde ia alguns trechos depois, por exemplo.

uma informação em um site que diz que a primeira parte, a caminhada do padre John Conmee e a última, a carruagem real que atravessa a cidade, são citadas em todos os outros trechos.

somando isso com a frase de Stephen sobre os dois senhores no capítulo 1, a igreja e a monarquia inglesa, temos uma puta ironia sobre os valores que percorrem as ruas de Dublin.

a técncia narrativa aqui chama-se labirinto, e consiste nessa deliciosa multiplicidade pontos de vista quebradas em pequenos trechos, capaz de gerar um quebra-cabeça para aqueles que pretendem encaixar todas as ações na ordem.

o episódio homérico não existe.

é, não tem.

os rochedos errantes era uma opção de navegação. a outra era passar entre Cila e Caríbdis, que foi o que Ulisses fez e é o capítulo nove do livro de Joyce. de acordo com as notas da versão da Alfaguara do Ulisses, o mito dos rochedos errantes é fruto de uma ilusão de óptica, que fazia os marinheiros acharem que as pedras se moviam para afundar os navios.

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quinta-feira, julho 12, 2012

Leiturosseia do Ulysses - Capítulo Nove - Cila e Caríbdis

METABLOGUE ON

como me atrasei nas postagens - minha leitura de hoje encerrou o capítulo 12 do livro - vou fazer uma única postagem por capítulo, sem separar as relações com a Odisseia de Homero. esse procedimento deve continuar até eu chegar em Circe, que é um capítulo gigantesco.

METABLOGUE OFF

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[National Library of Ireland, onde se passa este capítulo]

esse capítulo todo se passa dentro da biblioteca de Dublin. Leopold Bloom vai até lá em busca de uma referência para o anúncio de seu cliente, Shawes, enquanto Stephen Dedalus usa sua metamaticafísica para explicar sua tese sobre o Shakespeare, o fantasma de Hamlet e graus de parentescos dos mais diversos. ou seja, a narração deste capítulo é colada em Stephen - e é muito valiosa a difernça entre os "textos" dele e de Bloom.

toda a conversa entre Dedalus e um bando é sobre Shakespeare, com toneladas de citações. para destravar todos os segredinhos desses intertextos, tem de ser um grande leitor do bardo inglês. há, claro, muitas indicações e intertextos com a literatura em geral.

outra aspecto notável deste capítulo é o uso de figuras de retórica, que invadem o texto inteiro, que teve sua técnica narrativa batizada de dialética por James Joyce. ou seja, há muita tese, antítese e síntese na formação do texto.

interessante notar o preconceito contra judeus - especificamente Bloom - que já transparece nos comentários desse grupo. e não é agora ainda que Dedalus e Bloom se encontrarão.

o paralelo homerico é o seguinte: Circe adverte o Ulisses que ele tem duas opções para sair da ilha, ou enfrentar de um lado os Rochedos errantes, que são basicamente umas pedras que se movem pra lá e pra cá (parece aquelas fases de pulo do Mario Bros.) ou enfrentar Cila e Caríbdis.

Cila é um monstro de seis cabeças que devora humanos e vive nas rochas cercadas de mar. Caríbdis é uma espécie de buraco negro aquático que atraí e naufraga navios com golfadas de água e ondas, mas até onde entendi, também é um ser vivo.

Ulisses opta por passar entre Cila e Caríbdis, mais perto de Cila, pois com o sacrifício de alguns marinheiros eles passariam por ali, diferentemente de um naufrágio que mataria a todos - claro que os marinheiros não são informados de seu papel de patê de monstro marinho.

no paralelo joyciano, Dedalus (e não Bloom) é obrigado a tomar defesas de suas posições, sendo atacado de todos os lados por argumentos contrários e passando entre eles para sair inteiro.

como curiosidade, em inglês, "estar entre Cila e Caríbdis" é o equivalente ao "se correr o bicho pega, se ficar o bicho come" ou "entre o fogo e a frigideira". mais sobre isso aqui.

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quinta-feira, julho 05, 2012

Leiturosseia do Ulysses - Capítulo Oito - Lestrigões

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eis o momento do almoço. Leopoldo Bloom vai prum forra-bucho depois de ser expulso da redação do jornal. Todo este capítulo é ligado à comida. começa com a descrição de crianças comendo doces, vai pro Bloom que compra um pedaço de bolo pra dar pros pássaros e sai em busca de um lugar pra almoçar. ele vai rodar por Dublin até entrar num pub e ficar enojado com a forma que as pessoas comem e com o cheiro do lugar. pensa sobre o vegetarianismo e resolve comer um lanche mais comedido em outro lugar.

a escolha do lugar leva Bloom a passear por Dublin, levando em conta que precisa passar na biblioteca - que será o cenário do próximo capítulo.

nesse trânsito, Bloom é informado da sra. Purefoy, que está em um parto bastante difícil. ela vai ser visitada por ele no capítulo 14. a técnica narrativa chama-se peristáltica, cujo nome deriva de movimento peristáltico, que é o movimento involuntário, que por exemplo, o esôfago faz para engolir a comida. a ideia é que são movimentos não racionalizados que levam a comida ao seu lugar adequado.

no caso da narrativa, são as ações e as palavras que empurram o personagem e a atenção do leitor em direção do final do capítulo. o capítulo conduz toda a narrativa para o seu final. há váriaspistas dos próximos capítulos espalhadas.

o paralelo homérico daqui é com o episódio do Lestrigões, no canto IX, um povo canibal que devora alguns marinheiros de Ulisses e destrói todos seus navios, menos um, o do valoroso filho de Laertes (o Ulisses). se eles sõa canibais e se portam como selvagens, o capítulo de Joyce é sobre comdia e repugnância.

atenção para indicações olfativas e palatais. depois do lanchinho do senhor Bloom, vamos para a biblioteca.

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terça-feira, junho 26, 2012

Leiturosseia do Ulysses - Éolo

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[página da adaptação para os quadrinhos de A odisseia, de George Pichard]

nesse episódio, que está no Canto X da epopeia de Homero, o Odisseu valoroso (Ulisses, pros íntimos e latinos) conta suas desventuras na corte do rei Alcino.

James Joyce usa o episódio em que Ulisses desembarca na ilha do deus Éolo - sim, aquele que é vento. Lá, o grego chora as azeitonas pro Éolo, que diz que vai ajudá-lo,e dá um saco com todos os ventos, mas Ulisses não deveria abri-lo.

aí Homero faz o que sabe melhor: mostrar a cobiça humana. os marinheiros de Ulisses ficaram putinhos porque ele é quem leva os elogios e os presnetes por onde passa enquanto eles ficam ali criando calo na mão (por causa dos remos). acham por bem, portanto, pegar parte do tesouro para si, e abrem a sacola com os ventos.

uma grande tempestade se forma e o barco é jogado de volta à ilha de Éolo, que dessa vez, expulsa os visitantes, por não terem seguido seu conselho e terem se mostrado amaldiçoado pelos deuses.

em Ulysses, o capítulo está cheio de ventos, ares, brisas e dispositivos que colocam o ar em movimento. e no paraleo mais óbvio, Bloom é expulso pelo editor do jornal quando retorna com uam contraproposta para o anúncio, negando a esse Ulisses também a ajuda.

no próximo capítulo, os Lestrigões. saia daí, mas volte.

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sexta-feira, junho 22, 2012

Leiturosseia do Ulysses - Capítulo Sete

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[Henri Matisse para uma edição ilustrada do Ulysses]

esse capítulo é delicioso e de formato extremamente moderno: fluxo de consciência, diálogos e trechos cortados em pequenos capítulos.

há a agilidade do jornalismo e seus textos curtos - perceba que os pequenos trechos são intitulados com manchetes jornalísticas. o modelo narrativa é da Entimemática. explico

um entinema é um silogismo sem uma das suas partes, por ela ser pressuposta. exemplifico com o mais clássico dos silogismos (é o mesmo exemplo da wikipedia também):

1) Todo homem é mortal;

2) Doutor Sócrates é homem;

3) logo, Doutor Sócrates é mortal.

um entinema seria: Todo homem é mortal, logo, Doutor Sócrates é mortal.

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foi?

observe como isso vai rolar nos diálogos e na narrativa: haverá inbterrupções, causos abandonados, falas cortadas, além de muita correria, típica de uma redação de jornal. muitas figuras de linguagem de retóricxa estão polvilhadas por todas as páginas do capítulo.

Bloom vai até o jornal Freeman para acertar alguns anúncios que vendeu e acertar negócios. enquanto isso, o dono do jornal conversa com algumas pessoas. Stephen chega até lá para trazer a carta que Deasy escreveu lá no capítulo dois - mas Bloom e Stephen não se encontram ainda.

quando estão saindo para almoçar, Bloom volta correndo para falar com o editor e é escorraçado de maneira grosseira por ele, que não aceita a contraproposta de anúncio do Shawes, cliente do nosso protagonista.

gosto muito desse capítulo é de um trecho dele que o editor da tradução mais recente do Ulysses no Brasil, André Conti, escreveu uma coluna pro blog da Cia. das Letras.

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quarta-feira, junho 20, 2012

Leiturosseia do Ulysses - Hades

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[Imagem de David Byers Brown para o Canto XI da Odisseia, com Ulisses contando sua história para o rei Alcino]

esta é a primeira vez no livro que Joyce vai deslocar uma cena da Odisseia da sequência de eventos criada por Homero. antes de chegar ao Hades, no canto XI, Ulisses se encontrar com Éolo, com os Letrigões, com o Ciclope e com Circe, cenas que no Ulysses são posteriores.

Ulisses, aconselhado por Circe, vai até o Hades, que é a morada dos mortos, para conversar com o sábio Tirésias e descobrir um jeito de voltar pra casa mais susse, pois desde daquela época os portos já estavam virando rodoviárias (#Cidadãogregosofre) e aproveita pra colocar a conversa em dia com várias parças que caíram na guerra de Troia, tipo o Agamenon e Aquiles (aquele do calcanhar).

para conversar com os mortos há todo um ritual com sacrifícios animais. somente a alma que beber o sangue sacrificial recuperará a memória  e o dom da fala e poderá trocar uma ideia com o autor do sacrifício. em Ulysses, Bloom acompanha todo o cerimonial de enterro e ao contrário de Ulisses que é sempre ouvido por suas "palavras aladas", Bloom é grosseiramente cortado diversas vezes por diversas pessoas diferentes.

no livro do Joyce, Bloom e aqueles que o acompanham falam com de mortos e lembram deles o tempo todo. uma relação bacana é que o defunto Paddy Dignam morreu do coração de tanto beber e na Odisseia um dos companheiros do Ulisses morreu na casa de Circe porque tava travado de vinho e caiu do telhado. ou seja, o álcool abotoou o paletó dos dois.

muitas histórias de afogamento e de se molhar ou nadar e cair na água, não só neste capítulo, mas em todo o livro, fazem paralelo com os marinheiros de Ulisses que naufragaram ou morreram no mar.

Bloom também conta os presentes no enterro e são 12 e mais ele, assim como Alcino tinha 12 reis e mais ele a receber Ulisses. sem falar no óbvio 13, número místico até o radical.

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sábado, junho 16, 2012

Bloomsday

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é em 16 de junho que começa a jornada de Leopold Bloom e Stephen Joyce dentro do livro Ulysses.

os nerds joyceanos comemoram essa data, normalmente enchendo a cara e gritando seus trechos favoritos do Ulysses.

a gente dá feliz bloomsday pras pessoas?

"Shut your eyes and see."

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sexta-feira, junho 15, 2012

Leiturosseia do Ulysses - Capítulo Seis

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[Kirsty White em desenho para uma edição da Penguin do Ulysses]

finalmente, Leopold Bloom vai para o velório de Paddy Dignam. o capítulo começa com Bloom sendo convidado a ir na mesma carruagem que Simon Dedalus (pai de Stephen), Martin Cunningham e Jack Power.

enquanto o carro passeia por Dublin em direção ao cemitério, os personagens conversam e contam causos, como o o menino que caiu no rio Liffey e foi resgatado pelo cós da calça com um gancho ou do defunto que rolou para fora do caixão numa curva mal-executada pelo cocheiro. Simon não vê seu filho Stephen, embora ele tenha sido avistado de passagem pelos demais passageiros.

por todo o capítulo os mortos serão lembrados e como é habitual na Irlanda, no Brasil ou onde quer que se junte mais de 3 a gracejar, surgem os comentários preconceituosos. no caso, contra estrangeiros, judeus e suicidas. o pai do Bloom é um estrangeiro, judeu e suicida, tornando o nosso caro Leopold vítima dessa porra toda.

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o modelo narrativo aqui foi chamado de incubismo por Joyce. uns teóricos doidões atribuem isso ao demônio sexual masculino íncubo, que estaria como que possuindo o capítulo e sugando-lhe a energia.

eu, irresponsavelmente imodesto, não vejo bem isso. acho que o incubismo pode ser de incubado, como se o narrador estivesse dentro dos personagens, particularmente, Bloom. seria um narrador-pomba-gira que baixa no personagem.

evidências que enxergo pra isso: aqui a técnica de o narrador usar o léxico do personagem é mais exemplar que qualquer capítulo anterior. a descrição feita da missa e seus rituais é cheia de termos coringas, de quem não conhece o ritual católico, tipo um judeu feito o Poldy. os pensamentos de Bloom - sobretudo sobre morte e mortos, claro -- mas também da trepada dele e da Molly que resultou no filho já morto, Rudy -- - entram no meio da descrição das ações o tempo todo (sob esse aspecto uma versão reduzida do terceiro capítulo).

no final, Bloom dá um aviso pra John Henry Menton com quem ele quebrou o pau jogando bocha uma vez, que o seu chapéu está torto, deixando-o "sem saber onde enfiar a cara" (MÃE, Minha). esse senhor Bloom é demais.

ah, e apesar de estar em comic sans, www.iwate-pu.ac.jp/~acro-ito/Joycean_Essays/U06_insurrection&life.html" target="_blank">aqui está um puta artigo sobre este capítulo. "Obrigado. Como estamos magnânimos hoje."

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quarta-feira, junho 13, 2012

Leiturosseia do Ulysses - Capítulo Cinco

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[Imagem de David Byers Brown para o Canto IX da Odisseia, com Ulisses contando sua história para o rei Alcino]

nesse quinto capítulo, nosso querido amigo Leopold Bloom vai andar um pouco por Dublin enquanto espero o horário do enterro de Paddy Dignam. evidencia-se aqui que ao contrário do Ulisses da Odisseia, quem tem tido casos fora do casamento é Molly. ou melhor, casos carnais, porque leopold Bloom mantém uma caso via carta com uma mulher sob o pseudônimo de Henry Flower.

e também recebeu da sua palavramante uma flor seca no envelope.

esse é um capítulo muito bem amarrado ao episódio homérico e, diferentemente de antes, vou colocar todas as minhas observações nessa mesma postagem e partimos em um dia próximo para o capítulo 6.

o episódio de referência é o dos lotófagos, ou dos comedores de lótus (permaneça perceptivo para flores nesse capítulo), que é um trecho dos mais miúdos na Odisseia (capítulo IX, versos 61 a 78). e esse capítulo é bastante exemplar do tipo de relação que Joyce constrói entre o seu livro e a epopeia homérica.

explico:

na Odisseia, os lotófagos passam o dia inteiro comendo flor de lótus e fazem porra nenhuma - tipo quase todos nós na internet - e alguns homens que o Ulisses mandou lá ver qualé entraram nessa pira (literal-metaforicamente) e foram arrastados por seu valoroso capitão de volta ao mar.

no livro do Joyce não vai ter ninguém chapado ou comendo flor, mas o capítulo todo estará obnublado, como se o narrador tivesse meio anuviado. o estilo narrativo que Joyce chamou de narcisismo tem tudo a ver com o ficar dentro de si e não agir muito bem no mundo exterior, até que a água te afunde na realidade.

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todo o capítulo é preguiçoso, segue um "dolce far niente" e termina com o Bloom tomando um banho. todos os aromas e sabores são valorizados aqui, como se os sentidos de Bloom fossem muito mais aguçados.

ele encomeda um perfume de flor de laranjeira para Molly (esse cheiro é associado a ela durante todo o livro) e compra um sabonete com odor de limão. a última cena desse capítulo é Bloom flutuando na banheira e seu pau sendo comparado a uma flor.

(uma avaliação pelo viés do grotesto e do baixio corporal rende horrores nesse livro)

Bloom anda pela cidade, vê vitrines de chá, encontra McCoy, que faz Bloom lembrar do golpe da mala - que se não me engano, rolou num conto do Dublinenses - apanha a carta da Martha, a amante datilográfica, se livra do envelope, resolve encomendar o perfume de flor de laranjeira e comprar um sabonete para o banho, e antes de se lavar, cruza com Garnizé Lyons que lhe pede o jornal emprestado, age d emodo estranho e sai correndo. Bloom entra no banho e é isso.

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segunda-feira, junho 11, 2012

SLLT « Blog da Companhia das Letras

Por André Conti


A geladeira de James Joyce: 1. Ligar para o banco; 2. Lavanderia; 3. Forjar na forja da minha alma a consciência incriada da minha raça; 4. Ligar para a mamãe

Ainda estou me acostumando com a ideia de que o Ulysses finalmente saiu. Pelo que andei conversando com o Galindo, tradutor do bicho, ele também estranhou. Só posso imaginar. Os anos de discussão, ansiedade e trabalho que passamos em cima do livro representam uma fração dos anos de discussão, ansiedade e trabalho que o Galindo passou desde o início da empreitada, mais de uma década atrás.

Agora, nosso filho criado no porão e alimentado por debaixo da porta resolveu que é gente. Fica de pé sozinho. Não precisa mais de nós.

No sétimo episódio de Ulysses, o sr. Bloom visita a sede do Freeman’s Journal, onde tenta negociar um anúncio. Num determinado momento, ele para diante das máquinas de impressão do jornal:

“Sllt. O cilindro inferior da primeira das máquinas projetou sua bandeja com sllt a primeira fornada de mãos de jornais dobradas. Sllt. Quase humano o jeito que ela fica slltando pra chamar atenção. Fazendo o melhor que pode pra falar. Aquela porta também estava slltando quando rangia, pedindo pra ser fechada. Tudo fala à sua maneira. Sllta.”

É uma das minhas passagens favoritas no livro. É também um dos grandes exemplos da capacidade infinita do sr. Bloom de humanizar as coisas. Máquinas, objetos, pessoas, animais: em Ulysses, tudo fala à sua maneira. Agora esse Ulysses, que foi só do Galindo, depois da Sandra e da Beatriz, aí de alunos e amigos, e então do Paulo Henriques e um tiquinho assim meu, pode falar à sua maneira.

Digo um tiquinho sem sombra de falsa modéstia. O texto final que recebi, fechado pelo Galindo e o Paulo Henriques, havia sido pensado à exaustão. Meus pitacos frequentemente esbarravam na lógica interna do romance, onde uma determinada escolha vinha precedida e sucedida de justificativas no próprio texto. De modo que aprendi um bocado sobre Ulysses tendo minhas sugestões recusadas. Aprendi também um bocado sobre tradução, edição, livros em geral.

O que não quer dizer que algo da minha experiência com o livro não esteja ali, ainda que esse algo seja muito específico. Um dos temas centrais do Ulysses, afinal, é a amizade. E essa tradução nasceu em torno de uma série de amizades. Li o romance pela primeira vez com um amigo, o Alê, em voz alta e todas as quintas. O texto final também foi resolvido por dois amigos, o Paulo e o Galindo. E o Galindo e eu falávamos do livro muito antes de o projeto de edição da Cia. existir.

Um pouco dessa dimensão afetiva não deixaria de transparecer num romance tão preocupado em esmiuçar as muitas maneiras em que as pessoas se ligam umas às outras. Se discutimos o livro constantemente, também jogamos semanas de conversa fora, passeamos de carro por Curitiba, o Galindo tocou “Here comes the sun” no uquelele, a gente foi até Morretes por uma serra toda ensolarada, de estrada de pedra, onde comemos barreado e visitamos uma criação de tartarugas. Um dos méritos do Ulysses é registrar a vida miúda, o pedaço de conversa da mesa ao lado, um instantâneo absolutamente específico que, apoiado no domínio técnico do Joyce sobre a língua, se vale desse humanismo compassivo do autor para expandir a miudeza e a especificidade no que há de mais universal em todos nós. Espero que um pouco da nossa própria miudeza tenha encontrado lugar na tradução.

E agora, como diz o próprio Galindo na apresentação, esse Ulysses é teu. Há literalmente centenas de caminhos a serem tomados — tente seguir a trajetória da batata no bolso de trás do Bloom, por exemplo —, todos irremediavelmente pessoais. Claro que o mesmo pode ser dito de qualquer livro, em graus variados. E todo mundo tem um romance que parece ter sido feito na medida para si, em forma ou conteúdo. Mas, na megalomania do autor (“Hoje sou capaz de fazer o que quiser com a língua inglesa”), Ulysses parece alcançar uma medida mais ampla.

Basta pensar na celebração anual em torno do 16 de junho, dia em que se passa o livro. Acho revelador que, em meio a tantas obras tão ou mais célebres, apenas Ulysses tenha o seu dia. Posso imaginar a festa anual do Hamlet, com um monte de gente sorumbática, vestida de preto, falando mal do tio. Ou da Madame Bovary, com leitura de bestsellers seguida de adultério extremo e insatisfação geral. Ao nivelar a experiência por cima, exigindo atenção e paciência de seus leitores, Joyce possibilitou a qualquer um deles uma entrada igual — democrática — no livro. Por isso a festa. Por isso o carisma da obra.

Que o romance seguinte de Joyce, Finnegans Wake, tenha aparentemente realizado a operação contrária, alienando até defensores ferrenhos do Ulysses, fica para uma próxima tradução do Galindo, quem sabe daqui a dez anos.

Mas não custa deixar um teaser

* * * * *

André Conti é editor da Companhia das Letras.
SiteTwitter

* * * * *

Bloomsday no Brasil:

SÃO PAULO:

  • 15 e 16 de junho: Giacomo Joyce e Ulysses — Uma celebração italiana do Bloomsday
    25ª edição do Bloomsday paulistano, com uma programação especial que incluirá dois dias de atividades.
    Local: Casa Guilherme de Almeida & Finnegan’s Pub
  • 16 de junho, às 16h: Aula aberta com Caetano Galindo
    Caetano Galindo, tradutor da edição de Ulysses lançada pela Penguin-Companhia, dá aula aberta sobre o clássico de James Joyce.
    Local: Loja Companhia das Letras por Livraria Cultura – Av. Paulista, 2073

RIO DE JANEIRO:

  • 17 de junho, às 19h: Palestra com Caetano Galindo
    Caetano Galindo, tradutor da edição de Ulysses lançada pela Penguin-Companhia, dá aula aberta sobre o clássico de James Joyce.
    Local: Livraria da Travessa Leblon – Av. Afrânio de Melo Franco, 290

BELO HORIZONTE:

  • 16 de junho, das 15h às 18h: veja a programação
    Local: Memorial Minas Gerais – Praça da Liberdade, s/n

SANTA MARIA:

[Se alguém souber de outras comemorações do Bloomsday no Brasil, por favor, nos avise e adicionaremos aqui!]

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A opinião do editor da versão mais recente do Ulysses pro português.

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