quinta-feira, agosto 24, 2006

Uma garganta cortazariana

Ele sempre teve problemas com sua garganta. Mas isso não o impedia de cantar. Inflamava constantemente, acordava no meio da madrugada por afogamentos, cuspia várias vezes ao dia pequenas bolas amareladas e com pêlos.

Pêlos pequenos. Acostumado, não dava muita importância. A moléstia lhe era amiga sazonal, cheia de indas e vidas. Mas posso perder minha cinta, minha mãe e minha garganta, desde que tenha o rock'n 'roll, dizia.

Em alguns anos, as coisas se complicaram: por mais que as dores e inflamações tornassem em intervalos cada vez maiores, se iam rápida e vorazmente, levando consigo, uma parte dele: sua voz.

Ele foi enrouquecendo. Só podia cantar Ira!, Bob Dylan e músicas infantis em que existia uma voz de pato. Simples assim, de pouco em rouco, mudou-se em um mudo completo. Conseguia falar uma frase curta, mas sua garganta precisaria em repouso por mais algumas horas antes da próxima sentença.

Após as palavras, a doença começou a levar embora os espaços da garganta, mas continuava a deixar pêlos. E o que lhe deprimia era não poder mais cantar.

Quando foi ao médico e ensaiou um raio-x gargântico, reconheceram lá dentro um cisto entalando na guela, em forma de coelho selvagem. O médico disse que em caso de andorinhas africanas é possível intervenção, mas os coelhos escavam as carnes a cada sílaba.

Deu-lhe 2 meses de vida, desde que não falasse mais.

No dia de sua morte, cercavam sua cama amigos, uma ex, a mulher, uma amiga que preferia ser uma ex que ser uma amiga, o pai, a irmã.

Ele escrevera uma nota dizendo que diria a coisa mais importante de sua vida.

O pai pensou que ele agradeceria a grana da faculdade, a mulher os filhos que não tiveram e que não estavam orfãos, a ex a louca paixão, os amigos a amizade imedida, a irmã lembranças da infância com ela. A amiga que queria ser ex esperava uma linha de arrependimento pelo não-tudo.

Mas ele, simplesmente, cantou. Morreu no meio da palavra 'scratch', atrapalhando o compasso.


Just - Radiohead

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