quinta-feira, fevereiro 03, 2011

Jornal velho - Antonio Prata

Sou fã desse cara!

Saiu na Ilustrada de ontem:

ANTONIO PRATA

Cê tem aí uma faquinha?


Adiaremos sempre o "tá resolvido!", repetindo em seu lugar o angustiante "até aqui, tudo bem"

"DEEM-ME UMA ALAVANCA e tirarei a Terra de seu eixo", disse o grego Arquimedes, no século 3 a.C. "Deem-me uma faquinha e um pedaço de fita isolante que eu a coloco de volta", diria um brasileiro, em qualquer época.


Não há desafio neste mundo -de trocar a fiação do prédio a consertar um carro usando peças do motor da geladeira- que o patrício não se ache capaz de enfrentar, munido destes dois multifuncionais objetos: faca & fita.


A faca, entre nós, é chave de fenda e Philips, alavanca, plaina, martelinho, espátula, pincel, régua, alicate, pá; até como antena de rádio já vi usarem-na, presa ao aparelho por -claro!- um pedaço de fita isolante, sua fiel companheira. Se a faca, clara e brilhante, corta, penetra, separa, desbrava, qual bandeirante varonil, a fita, negra e opaca, une, remenda, conserta, protege, mãe gentil. Eis a dupla perfeita, nosso Yin Yang made in Brasil.


Dia desses, eu estava no banho e senti um cheiro de queimado. Chamei um eletricista. Ele constatou que o fio que ia da caixa de luz ao chuveiro era mais fino do que o recomendado pelo fabricante. "Precisa trocar a fiação, seu Antonio". Fiquei olhando-o com aquela cara suplicante que todo brasileiro faz diante de um problema, esperando por uma solução mágica. Ela veio: "Se bem que, no caso, se eu desencapar aqui na ponta e refizer a ligação, enrolando bastante fita isolante, segura mais uns dois, três meses.


Quer?". "Quero!". "Beleza. Cê tem aí uma faquinha?". Já faz uns quatro meses e, até aqui, tudo bem.


Claro que nem toda faquinha é concreta, nem toda fita é tangível.


Quantos presidentes da República não se elegem prometendo reforma política e tributária mas, chegando lá, dizem que, "se bem, no caso, se desencapar aqui, cortar dali, enrolar acolá, pronto!" O próximo proprietário que troque a fiação - e arque com o custo.

Que não se anime demais o leitor liberal, desses que pensam que os males do país são todos frutos da governança pública e de uns seres maléficos chamados políticos, tão diferentes de nosotros. O que são esses terceiros andares ilegais nas casas de São Sebastião, que o Cotidiano tem revelado? No projeto aparecem como mezaninos; na paisagem, lá estão: um andarzão a mais, a contrariar as leis de ocupação. E as danceterias com alvará de restaurante? E as máfias das autoescolas, que agem junto ao Detran, para "liberar" e "agilizar" a documentação do pessoal? Tudo puxadinho, construído na base da faca e da fita isolante, a criar cômodos e incômodos sobre e sob as lajes da lei.


"Ah!" - diz o brasileiro, em sua defesa - "é que com as leis absurdas" "com os fiscais corruptos", "com o Congresso que a gente tem", "com as lombadas eletrônicas", "com o preço da reforma" -esse fui eu - "não dá pra fazer a coisa correta. Esse país só funciona com gambiarra!"


Então tá. Adiaremos sempre o "tá resolvido!", repetindo em seu lugar o angustiante "até aqui, tudo bem".
Até a hora de o chuveiro pegar fogo, o morro deslizar, o prédio despencar, a luz do país inteiro apagar. Já imaginou que horror, se acontecesse alguma coisa dessas? Deus me livre! -digo eu, e dou três batidas no cabo -de madeira- da minha faquinha.

antonioprata.folha@uol.com.br

@antonioprata

Blog "Crônica e Outras Milongas" 
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