quinta-feira, fevereiro 10, 2011

Jornal velho - Marcelo Coelho

Na Ilustrada de ontem, Marcelo Coelho fala sobre sungas e sobre a revolução egípcia.

Concordo com tudo, menos com a parte do mocassim.

MARCELO COELHO 

Sungas, jamais! 


Às favas, portanto, com vossas sungas, cariocas, pernambucanos, paulistas: soy antes argentino

OS BRASILEIROS invadiram Punta del Este neste verão, segundo li na Folha algumas semanas atrás. Um detalhe, entretanto, chama a atenção de uruguaios e argentinos.
Estranha-se muito, naquelas praias do sul, que os brasileiros estejam sempre de sunga. E de correntinha. Por lá, o uso da sunga parece ser restrito apenas aos membros da comunidade gay.
Ao ver alguém de sunga em Punta del Este, portanto, o argentino típico hesita: é gay ou é brasileiro? Ou será as duas coisas?
No que tange à indumentária masculina, tendo a admirar os padrões argentinos. Demorei muito a "assumir", digamos, o uso da sunga e da havaiana em lugares de praia.
Preferi, durante muitos anos, usar a bermuda de algodão e o mocassim. Era menos "popular"; mais "distinto", mais "clássico", mais... argentino.
Tendo aposentado esse modelito aí pela segunda metade do governo Fernando Henrique Cardoso, assinalo que minha antipatia pela sunga não diminuiu com o uso, e possui diversas razões para se manter.
Razões históricas, psicológicas, etimológicas e sociais.
Históricas: minha aversão pela sunga remonta aos anos 80, quando numa operação de marketing político divulgaram fotos do general Figueiredo fazendo exercício. Compenetrado e furioso, o então presidente da República levantava halteres, bufava numa pista de corrida, expelia suor e testosterona pela careca; tudo isso, de sunga e tênis.
Esse tipo de atleta já passado em anos é comum em certos lugares do Rio de Janeiro, como a praia do Flamengo; sem dúvida, um paraíso para militares aposentados. Jogam peteca e fazem cooper; a pele, de tanto tomar sol, já é uma espécie de couro, de casco, de couraça cangaceira; a energia desses sexagenários, voltada para o frescobol ou o vôlei de praia, ganha aspectos de inconfundível revanchismo.
Por cima, a sunga. Tudo, menos usar uma coisa dessas! Verdade que minha repugnância escondia outros complexos, outros traumas. Nunca me orgulhei do meu próprio físico. O uso da sunga -pura e simples, sem camisa- inspira-me um nada falso movimento de modéstia. Às favas, portanto, com vossas sungas, cariocas, pernambucanos, paulistas: soy antes argentino. Quizás uruguayo.
A palavra, em si, já me desagrada, com seu "g" pendurado depois da cava do "u" e do "n" invertido na frente.
Passemos à correntinha. Provavelmente aquelas antigas, de Nossa Senhora Aparecida, não se usam mais; o que causa estranheza em Punta del Este deve ser mais aqueles correntões de ouro, tipo bicheiro e traficante, outra herança dos anos Figueiredo.
Mas que seja: correntinhas; beijá-las antes de entrar na água. Fazer o sinal da cruz na hora de cobrar um pênalti. Um argentino não sei, mas um americano poderia talvez pensar, a cada gesto desse tipo, que o povo brasileiro é composto de religiosos, e mesmo de fanáticos.
Cada vez que vejo muçulmanos inclinados para Meca, naquelas fotos que os mostram em multidão, a ideia do "fanatismo" se acende em mim do mesmo jeito. Como saber? Talvez uma reza seja apenas uma mistura de reverência e hábito, de respeito e medo, como o ato de quem se persigna ao entrar no mar.
E aquelas mulheres de véu na cabeça, participando das manifestações no Egito, usam o véu por razões "religiosas", é certo. Mas quem sabe se não tão religiosas assim.
Evitar o uso de sunga e preferir a bermuda não é religião, mas quase -envolve pudores, convicções, tabus, hábitos, preconceitos, crenças, sei lá o que mais.
Escrevo isso enquanto leio artigos dizendo o que os egípcios querem ou deixam de querer em seus movimentos de protesto. Não são religiosos. Querem liberdade. Não querem liberdade. Querem emprego. Não querem emprego. Querem...
Com que autoridade se multiplicam essas interpretações! É como se alguém dissesse, durante as Diretas Já, que os brasileiros não querem democracia, mas sim uma moeda estável... Ou se, em 1979, alguém dissesse que os iranianos queriam democracia, e nunca iriam aceitar um regime fundamentalista xiita.
Não me arrisco a interpretar os egípcios, portanto. Aquela situação pode evoluir em muitas direções. Só para quem acredita em Alá, de resto, tudo já está escrito. Eu, por exemplo, nunca quis usar sunga. Acabei usando -sabe-se lá onde isso vai parar. 
coelhofsp@uol.com.br

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