Excelente coluna no caderno Ilustrada de hoje, na Folha de S. Paulo:
JOÃO PEREIRA COUTINHO A ciência da procrastinação
Em janeiro, as promessas para 2011 jazem com 2010. O peso não baixa. O cigarro é ainda a chupeta predileta |
Em finais de janeiro, as promessas para 2011 jazem com 2010. O peso não baixa. Aumenta. Os cigarros continuam a ser a chupeta predileta. O trabalho continua entediante, massacrante. A relação, definitivamente, não dá. A viagem -enfim, será possível viajar numa altura dessas?
O estresse é tal que já não existem unhas para roer; nem sabugo; às vezes, nem dedos.
Sei do que falo. Também eu sou dado ao delírio. Consulto os meus diários passados e constato, sem surpresa, que jamais cumpri uma única promessa das mil que faço anualmente.
Durante anos, como Samuel Pepys (1633-1703), também nos diários, usava um chicote mental de culpa e frustração para fustigar a minha consciência.
Descubro agora, via "The New Yorker", que o meu problema -melhor: o nosso problema, irmão leitor, é um dos grandes desafios filosóficos do tempo moderno.
Chama-se "procrastinação", mas, na verdade, é maleita que já existe desde os gregos.
Nossos antepassados até tinham um termo mais rigoroso para ela: "akrasia". Significa tomar uma decisão que é racionalmente contrária aos nossos interesses. Ou, no caso em apreço, não tomar decisão nenhuma. Adiar. Mascarar. Preguiçar. E desistir.
Segundo James Surowiecki, autor do artigo, o número de pessoas que admite problemas de procrastinação não para de aumentar em todos os estudos feitos sobre a matéria.
Um dos últimos, intitulado "The Thief of Time" (Oxford, 320 págs.) e analisado com detalhe por Surowiecki, dá apenas um exemplo entre mil: 70% dos pacientes com glaucoma arriscam a cegueira porque não usam as suas gotas regularmente. Deixam ficar para amanhã. Ou para depois de amanhã. Ou para depois de depois de amanhã.
Exatamente como nós: perder peso é um objetivo nobre. Para começar amanhã. Ou depois de amanhã. Ou depois de depois de amanhã. E eis que chega 2012.
Como explicar o fenômeno? Mentes pessimistas diriam: porque somos intrinsecamente preguiçosos.
Outras, mais otimistas, dirão que a preguiça nasce da ignorância: se os homens sabem o que é melhor para eles, agirão em conformidade para seu próprio bem.
A tradição intelectual do Ocidente assenta nessa fé: sabedoria é virtude, já dizia Platão.
Infelizmente, a procrastinação arrasa com tais certezas. E, contrariamente ao que imaginam otimistas e pessimistas, é traço humano e bem racional da nossa condição.
Afirma Surowiecki que todos os nossos planos assentam numa falácia simples: a ideia de que somos, como humanos, consistentes ao longo do tempo.
Mas não somos. A nossa consistência é testada, todos os dias, por fatores que não controlamos e que subvertem a beleza imaculada de nossas aspirações. Uma súbita promoção. Um súbito despedimento. Novos amores. Novos desamores. Alegrias imprevistas. Tristezas imprevistas. Como diria o sábio Nelson, a vida como ela é.
E, na vida como ela é, não dependemos apenas de fatores contingentes. Nós próprios estamos perpetuamente divididos entre o curto prazo e o longo prazo, avisa Surowiecki.
Uma batalha espiritual onde o diabrete do imediato vence o anjo mais distante. Repito: perder peso é uma aspiração nobre. Mas só depois de mais uma fatia de doce.
Conta o autor, em pormenor divino, que o escritor Victor Hugo (1802-1885) tinha por hábito escrever despido, pedindo ao criado que escondesse as suas roupas.
Era a única forma de ele ficar sentado à mesa, a trabalhar, sem ceder à tentação da vadiagem pelas ruas de Paris. Como eu o entendo.
Começa 2011. E nós começamos a construir planos para uma vida mais rigorosa, e saudável, e equilibrada.
Não funcionará. A vida não é assim. Nós não somos assim.
E se existe alguma certeza na "ciência da procrastinação" é esta: objetivos vagos e distantes começam a recuar perante necessidades mais imediatas, mais prementes. Mais presentes.
Ou, inversamente, nossos planos devem ser diários; humildes; transitórios; e sempre frágeis.
Rasgo todas as listas que preparei para 2011. Sem sentimento de culpa. O que será, será. Mas uma coisa prometo: amanhã mesmo,começarei a escrever despido.
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